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ESQUECI DE OLHAR A HORA

Contos, livros, resenhas, desenhos. Esqueça de olhar a hora só um pouquinho.

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Sopa de ervilha, cuscuz com ovo e café com leite

  • Foto do escritor: Heloysa Galvão
    Heloysa Galvão
  • 31 de jan. de 2019
  • 7 min de leitura

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Uma noite eu liguei pro meu vô. “Vô, to indo aí pegar uns documentos que mainha pediu”, ele respondeu “venha, minha filha” e eu desliguei. Foi rápido assim, foi simples assim, não precisávamos de mais palavras, nem eu, nem ele. Eu nem lembro que documentos eram esses e nem porquê mainha os pediu. Mas eu fui lá buscar, não morava muito longe.


Era hora do jantar, perto das 18hs, havia acabado de voltar da escola, minha irmã reclamando no banco de trás do carro enquanto mexia no celular, eu mexendo no celular escutando ela reclamar e mainha dirigindo tentando ignorar minha irmã reclamando.


Quando cheguei em casa, larguei minha mochila pesada na minha cama. Estava cheia de livros, não apenas livros da escola, eu sempre levava algum pra ler no intervalo. Por vezes, eu nem lia nada, mas era confortável saber que eu podia, se quisesse. Mal havia me deitado na cama, ainda bagunçada depois de me levantar pela manhã, quando minha mãe me pediu para ir buscar esses tais documentos. Nunca havia entendido o propósito de arrumar a cama todos os dias se todas as noites iria voltar a deitar nela e bagunçá-la novamente. Apenas parecia mais trabalho inútil e sem propósito além de deixar o quarto arrumado, que era um assunto com o qual eu também nunca me importei o suficiente.


Meu avô morava sozinho nessa época, ele tava doente e veio morar perto de nós, onde melhor podíamos dar suporte. Vivia cabisbaixo, dormindo, os óculos escorregando por seu nariz, lançando reflexões por sua pele morena através de suas rugas e suas manchas na testa e nas bochechas. Meu avô tinha olhos tristes, como um peixe fora d’água suplicando por uma alma bondosa que o atirasse de volta à água, mas seu sorriso sorria junto com seus olhos todas as vezes, era a alma bondosa e infantil que não bem compreendia a necessidade da pescaria esportiva.


Nesse dia, eu não precisei apertar a campainha. A porta estava aberta, convidativa, e, ainda a vários passos de distância, eu ouvi o som de talheres de inox sendo dispostos por uma mesa de vidro de oito lugares, os pratos sendo distribuídos à frente de mais três cadeiras, acompanhados de algumas xícaras e copos de vidro compridos esperando para serem preenchidos com algo que lhes desse vida, apenas por um momento, mesmo que fossem ser esvaziados novamente.


O cheiro de sopa de ervilha, de cuscuz molhado, café e ovo frito invadiu meus sentidos. Eles não esperaram, um por um, para se apresentar, entraram desesperados em um acumulado de odores e sabores confusos e tentadores, como crianças em uma viagem escolar visitando um circo, se encabeçando na fila pelo algodão doce cheio de corante que grudaria e se espalharia por todo o rosto delas, menos em suas línguas, atônitas por um punhado de açúcar.


Através da porta aberta da casa do meu avô, eu o vi sentado, sozinho, na ponta da mesa de jantar toda posta à espera de companhia. A refeição disposta à sua frente, seus cotovelos apoiados sobre a mesa e a cabeça apoiada sobre suas mãos entrelaçadas, as veias saltando sob sua pele fina.

Ao me ver entrando pela porta, seu sorriso se abriu e os peixes tristes que antes eram seus olhos saltaram de volta para o mar em liberdade, em alegria e alívio, amaciados pela umidade que tornava seus olhos brilhantes. Vô, me desculpa ter te deixado sozinho tanto tempo, me desculpa não ir espontaneamente, sem avisar, chegar lá e jantar nem que fosse bolacha água e sal na companhia dos peixes libertos no oceano do seu sorriso. Eu me pergunto quantas vezes o jantar estava posto para todos nós e esfriou à nossa espera porque nunca aparecemos, sem saber que nos esperava, sem pensar em como é solitário jantar sozinho numa mesa posta para oito.


Me desculpa não ter podido ocupar sete lugares todas as vezes que eu fui te ver pra falar de um livro novo, pegar outro emprestado, te contar dos meus poucos e fúteis planos pro futuro ou te mostrar um texto que havia escrito no fim de semana, um desenho que havia feito de você, que acabou saindo com a boca um pouco torta.


Eu sentei ao lado do meu avô, liguei pra mainha e pedi que ela me acompanhasse com minha irmã no jantar. E elas veieram, mas ainda sobraram quatro lugares.

Fiquei brincando com as veias saltadas na mão manchada e cheia de história do meu avô, desenhando os contornos que elas faziam até as pontas dos dedos, arrastando-as de um lado para o outro para ver até onde elas poderiam ir. Eu me recordo de caminhar com os meus dedos pelos seus dedos, acompanhando suas impressões digitais, esforçando-me para imprimir na minha memória como era cada pintura sua, queria escrever à caneta onde estava cada linha porque se escrevesse com grafite a lembrança poderia ser apagada.


As pontas dos seus dedos eram um pouco mais gorduchas do que o resto da mão áspera e suas veias não eram vermelhas, azuis ou rosas, eram arroxeadas, e eu conseguia desenhar um “S” com elas. Eu achei que prestando bastante atenção àquele momento eu não seria capaz de esquecer um só detalhe. Mas eu esqueci, vô, eu esqueci. Eu esqueci do seu cheiro e esqueci quantas rugas você tinha na testa. Esqueci do comprimento do seu braço e do seu livro preferido.


Estou esquecendo o som da sua risada, vô. Sua risada era como as ondas do mar, se destacando acima do som de qualquer outra coisa. Agora é o som das folhas das árvores se debatendo com o vento. Está sempre lá, longe, em algum lugar que eu não consigo identificar exatamente onde, eu sei que ela está lá, mas eu tenho medo, vô, dela virar uma brisa suave acariciando minha bochecha e eu ser incapaz de ouví-la.


Os seus olhos eram castanhos e seu cabelo não era completamente branco, ele era bastante acinzentado e eu lembro de, quando criança, prendê-lo com várias ligas de cabelo em pontos separados, e você rir da situação com um amigo, dizendo fazer parte do “ofício de ser avô”.


Eu não sabia o que comer naquela noite, porque eu adorava a sopa de ervilha, cremosa porém com uma textura um pouco arenosa que eu sempre amei, mas também não podia negar o cuscuz molhadinho com ovo frito. Me lembro até hoje do verde deslizando no meu prato fundo quando decidi comer um pouco de cada porque não conseguia decidir.


O creme na minha boca era suficientemente salgado quando dei a primeira colherada, não havia nada que eu quisesse mudar. Quem cozinhava pro meu avô era um rapaz sorridente chamado Roberto, e ninguém consegue replicar as receitas dele com perfeição. Eu aproveitei cada segundo daquele jantar porque queria guardar na memória, e guardei.


Meu avô sempre disse que era bonito me ver comendo, porque eu comia com calma, sentindo o gosto, distinguindo os sabores e entendendo que cozinhar é uma forma de arte. Eu não comia apenas para saciar minha fome, eu apreciava tudo que colocava na minha boca. Essa é apenas uma das formas que eu criei pra inventar inspiração onde muitas pessoas enxergam mantimentos.


Depois do verde, veio o amarelo, um prato totalmente amarelo de tons ligeiramente diferentes, e depois do amarelo veio o café. Eu nunca gostei muito de café, mas naquele dia eu tomei café com leite, e não foi a única vez que eu tomei café com meu avô. A primeira foi quando derramei café no cuscuz achando que era leite porque os dois estavam em recipientes muito parecidos e meu avô sorriu dizendo que tinha puxado a ele gostar de comer cuscuz molhado com café.


Na minha filosofia, se nós temos um momento de felicidade com alguém que amamos, devemos tentar ao máximo não estragar esse momento por pequenas coisas bobas e desnecessárias que não valem a pena ser trazidas à tona porque a vida é muito mais do que aquilo e às vezes aturar essas coisas pequeninas é muito melhor do que estragar o momento.


Na época, meu avô ficou achando muito legal essa compatibilidade que eu e ele teríamos, além do amor pelos livros, até mesmo por edições diferentes de uma mesma história que ele colecionava, eu não iria estragar um pequeno momento de felicidade dele, por mais singelo e ordinário que possa parecer, ao dizer que eu não gosto de café. O que custava eu comer um pouco de cuscuz com café junto com ele, que depois de me ver comendo cuscuz com café também derramou um pouco de café no cuscuz pra me acompanhar? Nada. E eu ganhei uma memória que agora registro.


Meu avô gostava de fazer cócegas em mim, na minha barriga, mais especificamente, quando eu era criança. Ele se esbaldava de rir quando me fazia cócegas, me fazendo rolar no sofá até que fosse necessário ele me impedir de cair. Eu nunca contei a ele que ele fazia cócegas muito forte e doía um pouco minha barriga, porque saber que eu estava criando um momento de felicidade bastava. Eu estava feliz e aquela cena não durava mais de 5 minutos do meu dia, a cada um mês ou dois meses.


Mas ficou na minha memória, uma memória com meu avô, que eu nunca mais poderei criar e nem recriar, e eu não me arrependo de ignorar esses pequenos desconfortos, porque foi permitindo que ele me fizesse cócegas, mesmo que doesse um pouco, que eu me impedi de esquecer de como o rosto dele ficava quando ele sorria, não apenas por fotos ou vídeos, que eu me impedi de esquecer por completo de sua risada até agora, mesmo depois de tantos anos sem escutá-la.


Eu só queria dividir a mesa de oito lugares com meu avô mais uma vez, queria poder ocupar todos os sete restantes e tomar toda a sopa de ervilha, comer todo o cuscuz com ovo e esvaziar a chaleira de café se fosse necessário, queria falar como estou escrevendo, como estou crescendo e como estão indo os meus planos idiotas sobre ser adulta. Queria escutar dele que não importa se eu não conseguir crescer agora, porque eu ainda tenho tempo demais, mas estou no caminho certo.


Eu só tenho 21 anos, queria escutar como ele está orgulhoso, queria que ele pudesse sentir orgulho, queria que ele pudesse sentir qualquer coisa, queria segurar sua mão mais uma vez, queria lhe dar um autógrafo do meu primeiro livro, queria que ele tivesse lido a primeira sentença que eu escrevi e que foi assinada pela juíza do gabinete em que estagio, queria lhe falar da juíza e lhe dizer que os meus planos não estão indo como o planejado.


Queria vê-lo sorrir mais uma vez nem que fosse forçado para uma foto, queria mainha reclamando dele estar fazendo careta, queria prender seus cabelos acinzentados mais uma vez com presilhas coloridas. Eu queria tanta coisa, vô, tanta coisa, queria que não tivesse ficado sozinho durante tanto tempo, queria mostrar como estou desenhando melhor, que não desenho mais bocas tortas.


Queria finalmente devolver os livros que peguei emprestados pra ler, queria que sua risada fosse ondas no oceano novamente antes que me reste apenas a brisa e um aquário que obriga os peixes a nadarem em círculos para sempre.


Quando eu saí da casa do meu avô, bem mais tarde daquela mesma noite, eu senti que havia pelo menos um dia, aquele dia, em meio à depressão constante na qual ele vivia àquela época, em que meu avô havia terminado o dia feliz.


2 comentarios


iliriagalvao
15 feb 2019

Ímpar!!!

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vanyacg
14 feb 2019

Muito emocionante!

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