Quase nada
- Heloysa Galvão
- 14 de fev. de 2019
- 5 min de leitura

Eu já fui montanha. Sim, já fui colossal, verdadeiramente magnífica, uma rocha que poucos se atreveram a escalar e um número ainda menor enfrentou minhas reentrâncias, meus musgos, meus arbustos e meus falcões até o topo, mas certamente muitos me apreciaram ao longe, fui fotografada inúmeras vezes pelas pupilas encantadas de turistas no crepúsculo da praia.
Ah, como eles gostavam quando o sol despontava sobre o cume, como um troféu. Longe da invenção da câmera fotográfica, alguns se contentavam em me desenhar, riscando um caderno escolar com grafite de ponta fina, cuidadosamente apontada, para registrar cada uma das minhas curvas e dos meus picos, minha extensa coleção de musgos e plantas baixas.
Mas como desenhavam, o lápis riscava o papel em desenho de montanha com a memória viva de quando o grafite montanha era, sem que o estudante se apercebesse segurar uma parte da natureza em sua mão, que um dia já fora o esplendor que agora desenhava, uma árvore tão viva que ela mesma se dava por capaz de pintar no chão pequenas montanhas com suas raízes e criar a arte que é uma sombra debaixo do cajueiro, a arte que é o cheiro adocicado que desce do pé de jaca madura dançando e rodopiando pelo vento como se bailasse um véu de seda.
Hoje já não me desenham, sequer sabem da minha existência, logo agora que inventaram celulares. Seria tão mais fácil me guardarem pra sempre, eu poderia ficar famosa, sair em páginas na internet, como o Monte Everest. Mas até o Monte Everest tem histórias como a minha, nem todos ficam para sempre, essa é a verdade, essa é a vida.
Eu fui expulsa pela chuva. Não, não apenas uma, eu sou mais forte do que isso. Foram muitas, algumas vezes pareceu até o fim do mundo, até que realmente se tornou o fim do mundo, mas daquele que eu conhecia, de quem eu costumava ser.
Eu fui expulsa pelo vento, muitos ventos fortes, quentes e frios. Passei frio demais como montanha. Eu sempre gostei de ficar no alto, e sofri as consequências. Eu queria ver a cidade, vê-la mudando debaixo do meu nariz, acompanhar o crescimento das crianças que visitavam a praia logo abaixo, fazendo castelinhos de areia que desmoronavam após 32 segundos, em média. Eu sei, eu contei, não tinha muito o que fazer. Observei as crianças perdendo seus brinquedos para o mar, fazendo piscininhas na areia, que eram cobertas quando a maré subia e tapava todas as falhas para uma nova manhã de verão.
Quantos casais eu já não vi terminarem? Mas quantos eu não vi começarem? Muitos, diversos, até mesmo das crianças, que quando cresciam começavam a namorar outras que eu nunca vi e pararem de ir à praia, de fazer castelinhos de areia e de chorar porque desmoronaram.
Eu gostava de ver as casas se acendendo e apagando, os filhos fugindo do castigo pela janela e os pais correndo de um lado para o outro quando chovia e surgiam goteiras. E as cidades nunca foram tão iluminadas. Antes, eu podia ver tranquilamente cada constelação, apontar cada estrela, cada planeta. Agora, vista de cima, a própria cidade parece um céu noturno, como se os monstros da vida moderna houvessem engolido o brilho das estrelas.
De onde estou, não vejo mais a cidade, não vejo mais crianças e nem o céu. Hoje, não sou montanha, eu já fui montanha, eu sou areia. Fui carregada pelo vento em algum dia de março, durante a tarde, e ninguém pareceu notar minha ausência. Foi quando eu percebi que tomei para minha existência um todo que não era meu. A montanha não era eu, e seu não era montanha, o que eu seria?
Construí minha história em cima da ilusão de ser algo grandioso quando na verdade eu era tão, mas tão pequena, eu era minúscula, Jesus, o que seria de mim? Eu era a cidade, tão insignificante, que se achou no direito de roubar o esplendor do céu que o universo levou milhões de anos para criar. Mas eu sou só um grão de areia. Um grão de areia no meio do oceano, sendo carregada junto à corrente, sem um destino, sem um porquê, engolida por invertebrados que não sabem que já construí uma montanha, que se ergue sem mim, como aquele estudante desenhava sem saber que seu lápis já foi floresta, já foi montanha, já foi vida.
Os dias passavam enquanto eu me preocupava sobre ser pequena demais, as semanas corriam por mim e eu não percebia a preciosidade que as chuvas e os ventos haviam me dado na liberdade de ir e vir, de conhecer um oceano que eu vi de longe por toda a minha vida, de saber o que havia ali dentro, me proporcionar entender quão gostoso é me esconder nas escamas de um peixe e ter potencial para me aconchegar dentro de uma ostra e virar uma pérola.
Hoje, eu fui levada pela maré cheia a uma nova praia, um lugar totalmente novo. Não era a praia à qual eu me acostumei, e nela as crianças ainda faziam castelinhos de areia.
Uma menina pequena, de cerca de quatro anos, com cabelos cacheados presos em duas "maria chiquinhas" ao lado da cabeça e maiô rosa com babadinhos, correu com entusiasmo até o mar e fugiu da onda que ameaçava molhá-la, rindo uma risada gostosa que eu nunca havia escutado do alto da montanha. Sua mãe a observava de perto, sem relaxar, com um pequeno balde verde à mão.
A garotinha correu até a mãe, pegou o baldinho de sua mão, retirou a pá de plástico de seu interior, sentou na areia e começou a cavar, colocando toda a areia dentro do baldinho, e eu fui junto, apenas mais um grão de areia no meio do balde.
O baldinho foi virado de cabeça para baixo no chão, uns tapinhas foram dados sobre o fundo e todo o meu pequeno ser chacoalhou de emoção. Eu estava vivendo o que antes vinha apenas observando, o sorriso da menininha nunca me pareceu tão vívido, cheio de esperança, nunca me pareceu tão sincero e feliz lá de cima.
O castelinho não durou 32 segundos, mas para mim durou minha vida inteira, pois toda ela passou a valer a pena. Foi no baldinho daquela menina que eu encontrei o meu sentido. Ontem, eu ajudei a construir uma montanha, mas só hoje eu ajudo a construir um castelo e, mais do que isso, um momento de felicidade de alguém, que provavelmente não vai se lembrar daqui a uns anos e eu provavelmente não vou estar aqui para vê-la se esquecer, mas eu vou lembrar para sempre. Sendo areia eu posso ser castelo, ser pérola, ser peixe, ser parte de um mundo.
Hoje, eu não sou montanha. Hoje, eu sou areia. Eu sou muito pequena, muito pequenininha mesmo, quase nada, sou apenas o suficiente para poder ser um universo inteiro, um pouco de cada vez.
“Pedras sonhando pó na mina
Pedras sonhando com britadeiras
Cada ser tem sonhos à sua maneira”
Lindo!!!!!!
Que texto perfeito!!!!!!!! Maravilhoso, lindo!!!! Parabéns!!!!