Nile e Dragão
- Heloysa Galvão
- 6 de mar. de 2019
- 10 min de leitura

A chuva caía forte sobre as ruas de pedra da cidade, obrigando todos a se abrigar do frio dentro dos Barracos, abrindo caminho em meio aos corpos adormecidos encolhidos sob tecidos puídos e rasgados que poucos ainda tinham o privilégio de encontrar dentro das barreiras da cidade. A doença caminhava lentamente e se espalhava pelos riachos, como se fosse dona daquelas terras e o povo, seu gado.
A noite se erguia, negra, em um céu vazio de estrelas e de lua, um manto tão escuro quanto a capa da menina que se esgueirava pelas paredes à procura de qualquer traço de comida como o rato faminto que era.
Era miúda, talvez pela pouca idade ou pela falta de comida que assolava aquelas terras desertas e condenava à morte muitas crianças sem forças para lutar com outras 15 por um pedaço de pão. Mas Nile não era uma dessas crianças. Ela era resiliente, forte, imbatível, era a ladra dos Barracos-dos-Sem-Teto, e aquela noite era perfeita para buscar mantimentos e remédios pelos quais os doentes e os sadios tão ansiosamente aguardavam sem esperanças, sua garantia de mais um dia de vida.
Rápida, Nile pulava sobre pedaços de construção que há eras ousaram se erguer em prédios majestosos, evitando deixar rastros e ser pega. Por ser pequena, conseguia encontrar esconderijo sob qualquer pedaço de papelão e dentro de qualquer buraco de parede. Já conhecia aquelas ruas como a palma da sua mão e nada se movia sem que ela soubesse para onde estava indo.
Dentro de alguns minutos, o guarda gordo e calvo da Capital iria trocar de posição com o outro guarda sem uma das orelhas que ficava na vigília das muralhas da cidade. Nile havia observado por muitas semanas a rotina dos guardas e agora já conseguia identificar os horários de troca de turno, o momento perfeito para se esconder nas sombras e seguir até os túneis subterrâneos, por onde a guarda da Capital transitava com os mantimentos, mantendo-os longe das mãos necessitadas da cidade, para que pudessem usá-los.
Não culpava de todo os guardas. Afinal, os mantimentos eram escassos em todo o território, e eles mesmos não sabiam quando iriam receber outra caixa de alimentos, estavam se colocando em primeiro lugar. Mas, assim como eles, ela também sabia jogar.
Uma das portas pesadas de metal que levavam ao labirinto de túneis subterrâneos escondia-se debaixo de barris sobre o piso de madeira deteriorada de um prédio caindo aos pedaços. Era a passagem mais próxima da torre de observação onde o guarda sem orelha deixava seu posto, e possivelmente seria por aqui que ele adentraria o labirinto, como fizera nas últimas semanas.
Nile se escondeu por trás de algumas caixas e tomou um longo e firme pedaço de madeira à mão. Seus cabelos escuros e curtos como os de um garoto voltavam a crescer depois de terem sido raspados devido a uma peste de piolhos que empestou o Barraco, mas ainda coçava debaixo do manto escuro.
Passos ecoaram pela construção, passos dados por pés calçados. Nile olhou rapidamente o guarda caminhar até onde a passagem pesada se escondia e apertou seus punhos ao redor do pedaço de madeira, preparando-se para pular quando a chance lhe fosse dada.
O homem retirou um molho de chaves de um dos bolsos, preso por uma corrente até seu cinto, e vasculhou até encontrar aquela que procurava, soando o reconhecido tilintar áureo pela noite escura. Abaixando-se, com as chaves em punho, ele retirou os barris e as caixas do piso e abriu uma fissura ao puxar para cima uma tábua marrom escura, revelando uma fechadura metálica preta coberta de poeira.
Ele, então, posicionou a chave na fechadura e rodou duas vezes até que um estalo baixo fosse escutado por Nile, que apoiou-se sobre o joelho, pronta para agir. A pequena porta quadrada foi aberta com um rangido grave que parecia saudar as velhas paredes enquanto uma luz amarelada banhava o salão em ouro e mostrava os pequenos grãos de poeira a dançar na coluna de ar. A garota precisou cerrar a expressão para conseguir focar na abertura. Rodou o pedaço de madeira na mão e o guarda adentrou o vão logo abaixo, descendo por uma escada rente à parede cinza do corredor, e soltou o alçapão.
Em um movimento rápido, Nile deslizou sobre o piso e posicionou o pedaço de madeira sob o alçapão, impedindo-o de fechar. Parou durante alguns segundos para atentar-se aos passos do guarda se distanciando e tornou a abrir a pequena porta de metal, olhando para baixo à procura de sombras, barulhos suspeitos ou guardas fazendo sua ronda pelo labirinto. Reconhecendo estar livre a passagem, desceu com cuidado e fechou o alçapão atrás de si sem qualquer barulho antes de pular para o chão e correr para o vazio escuro mais próximo. Manter-se nas sombras era sempre preferível para quem estava tentando se esconder.
Sorrateira, Nile correu para o depósito mais próximo. Para sua sorte, o labirinto não era bem iluminado. Apenas nos depósitos, salas comunais e à frente das entradas existiam lamparinas a óleo, de forma que praticamente todos os corredores eram imersos em escuridão. E assim como eram escuros, eram silenciosos. Qualquer barulho ecoava por vários metros de distância e era facilmente seguido pelos guardas da Capital.
Eram corredores traidores, um labirinto que engolia seus passageiros para que nunca mais vissem a luz do sol. Os guardas mais inexperientes eram proibidos de entrar e por isso ficavam na Capital. Vinham para as cidades apenas aqueles mais experientes, rigorosos e que melhor sabiam usar sua força bruta.
Mas Nile não era nova nessa vida de lutar contra o concreto, conhecia cada um de seus passos e era metódica em refazê-los com perfeição.
Sua pele cor de mogno foi atingida pela luz amarela bruxuelante do depósito. Estava na metade de seu caminho. Precisava apenas pegar comida, bebida e medicamentos, guardá-los em sua bolsa e encontrar o caminho de volta que já bem conhecia.
Não havia tanta comida na sala, não tanto quanto já houvera, mas seria melhor do que nada, já sobreviveram com bem menos. Nile pegou tudo aquilo que coubesse em sua mochila e mais um pouco, amassando e forçando cada pedaço de carne até que suas costas mal aguentassem o peso. Fazia isso constantemente, ao menos um roubo por semana, sempre em depósitos diferentes, sempre entrando por passagens diferentes e saindo por outras. Era necessário, a vida de seu povo dependia de seu esforço.
Ajeitou a mochila sobre os ombros com um grunhido quase inaudível. O suor lhe descia pelo nariz e pingava no chão de concreto, coberto de areia. Então começou a andar nas pontas de seus pés, evitando qualquer barulho e sombra projetada que pudesse evitar, pois não apenas lhe custaria a vida como também a de todo o povo.
Correu pelos corredores, virando à esquerda, à esquerda, à direita, seguindo em frente, se escondendo dentro de caixas, até alcançar uma pequena fissura na parede, coberta por um saco de cimento, pela qual poderia atravessar sua mochila e depois engatinhar até o lado de fora, onde encontraria uma sala de armamentos cuja porta, localizada mais à frente do corredor, estava sempre trancada.
Cheia demais para passar pela fissura, a mochila precisou ser esvaziada e cada elemento jogado pelo buraco um por um, custando um tempo precioso para Nile, que já podia escutar o guarda se aproximando de sua rota, realizando novamente sua ronda. A garota se apressou, jogou todos os mantimentos. Os passos se tornaram mais audíveis e uma sombra foi projetada logo ao fim do corredor.
Nile empurrou a mochila, que ainda tinha algumas coisas dentro, mal contendo seus batimentos cardíacos acelerados. Olhou com olhos desesperados à procura do guarda. Talvez tenha mordido mais do que conseguia engolir colocando tanta coisa dentro da mochila, poderia ter feito duas viagens para carregar tudo e correria menos risco de ser pega do que agora. Nenhum sinal do homem. O suor lambia seu rosto enquanto ela se esgueirava pela curta passagem e voltava a guardar as coisas dentro da mochila quando escutou a porta da sala se destrancar e abrir subitamente.
Ágil, ela escondeu a mochila sob a última prateleira de uma estante próxima que guardava caixas e mais caixas de munição. Entretanto, antes que conseguisse se esconder, foi levantada pelos punhos por uma mão gigantesca, que pertencia a um homem ainda maior, cheio de cicatrizes, que sorria de forma nada amigável.
− Então parece que encontrei nosso ratinho! – gargalhou. Nile se movia de um lado para o outro e chutava o homem com seus pés minúsculos, tentando se desvencilhar. Se conseguisse se soltar, tinha certeza de que conseguiria correr mais rápido do que qualquer um. – Ora, como é? Não vai falar nada, garoto?
Nile permaneceu calada. Sua voz feminina iria lhe entregar e sabia que se descobrissem que o ladrão era uma menina, seria ainda pior.
− Melhor assim, facilita meu trabalho. – com a outra mão, o guarda pegou uma grande caixa de munição, feita de madeira, esvaziou-a e colocou Nile dentro, sem lhe soltar em nenhum momento. Seus punhos doíam com a força administrada pelo homem para lhe manter presa. – Você vai aprender a não mexer com a Capital, moleque. – riu – Nem vai ter mais nenhuma oportunidade mesmo.
O homem desatou a rir em sua voz grossa enquanto Nile tentava encontrar alguma fragilidade na caixa, encolhida e quase sem conseguir se mover. Ela batia nas paredes, movia o corpo de um lado para o outro, mas de nada adiantava. O guarda a segurava de uma maneira impossível de fugir. Restava-lhe apenas formular um plano de fuga, sequer preocupava-se mais com a mochila.
A caixa a empurrava de um lado para o outro conforme o guarda caminhava até sabe-se lá onde. A mente da garota trabalhava a mil tentando se situar dentro do labirinto pela direção que o homem tomava em seus passos, para não se perder e encontrar alguma rota possível para fugir, mas de nada adiantou. De dentro da caixa, era tudo muito confuso.
Ela estava preparada para esse tipo de situação, mas o medo ainda a tomava por inteiro, nunca havia realmente precisado enfrentar a guarda da Capital. E agora que precisava se virar, estava paralisada. Seus sentidos a traíam e ela não era capaz de raciocinar direito, pelo medo, pela adrenalina, pela falta de oxigênio dentro da caixa. Ao fim, era apenas uma criança. Uma criança com medo sob circunstâncias intimidadoras.
Então, o homem parou e Nile escutou novamente o tilintar de um grande molho de chaves um pouco antes do som de algo sendo destrancado e uma porta ser aberta em um som de metal enferrujado.
A caixa foi jogada para longe e abriu-se dentro de uma cela minúscula, coberta de areia, poeira e insetos mortos. O ar era tão seco que feria suas narinas. Nile rolou para fora da caixa e, desnorteada, levantou-se, olhando ao redor com olhos marejados de medo.
− Não se acomode demais, garoto, ainda viremos buscar você. – o homem pigarreou e cuspiu no chão, sorrindo de maneira asquerosa pouco antes de sair.
As barras de metal da grade eram quadriculadas e mesmo Nile, que era magra e pequena, não conseguia passar. Ela se encolheu em um canto, com medo demais para ousar pensar, e chorou. As lágrimas rolavam limpando a poeira sobre suas bochechas e seus olhos estavam fechados para evitar olhar para as grades que a prendiam.
Um baixo arfar e o barulho de pequenas patas tomou presença à frente da cela. Nile abriu os olhos e ergueu a cabeça para observar quem seria seu visitante. Um cachorro? Ali embaixo? Confusa, Nile afastou as lágrimas dos olhos com as costas das mãos e limpou a coriza de seu nariz em suas roupas já imundas, só então se aproximou do cachorro.
− Oi, rapaz! Ou moça. – o animal arfava com a língua cor-de-rosa para fora. Seu pelo era mesclado branco e marrom escuro, com o pelo médio, ondulado, sujo e bagunçado. O nariz marrom escuro estava seco. – Desculpa, não tenho água nem comida pra te dar.
O cachorro permitiu que as mãos de Nile atravessassem as grades e lhe acariciassem as orelhas.
− O que você tá fazendo aqui embaixo? Veio procurar comida?
O novo amigo se afastou e andou um pouco, parando em um novo ponto da grade. Nile permaneceu estática, sem compreender o que o cachorro estava fazendo. O cão inspirou profundamente, seus olhos se tornaram amarelos e adquiriram brilho próprio, com pupilas de réptil, e alguns de seus pelos se transformaram em escamas de um tom esbranquiçado. Em suas costas, seus pelos se ergueram como se houvessem cristas de dragão tentando sair.
Então, o cachorro soprou um pequeno tornado de fogo azul e laranja e criou um buraco na grade aberto o suficiente para que Nile pudesse passar. A garota não soube como reagir. Ficou boquiaberta por alguns segundos, tentando juntar os cacos de seu cérebro para guardar as novas informações, até escutar passos céleres, naquela direção, e pela quantidade, parecia haver no mínimo cinco guardas.
− Você aí! Fique parado ou eu atiro! – os homens ainda não haviam chegado naquela parte das celas. – Homens, vão pelo outro lado, vamos cercá-lo!
Nile rapidamente passou pelo buraco na grade e se levantou, sem saber por onde seguir. Nunca havia estado naquele lugar, havia superestimado seu conhecimento sobre o labirinto e com certeza agora estava perdida. Ela olhou para o cachorro, suplicando qualquer outro tipo de ajuda.
− Eu não sei pra onde ir! – sussurrou.
O animal começou a correr em uma direção e Nile o seguiu cegamente, até perdê-lo de vista. As sombras dos guardas se aproximavam, junto com suas ameaças. Nile procurou alguma caixa, algum lugar mais escuro no qual pudesse se esconder, mas nada encontrou. Um latido curto e baixo reverberou do teto. Quando Nile olhou para cima, o cão estava de cabeça para baixo, os pés transformados em pés de lagarto com garras. O cachorro desceu pela parede à altura da garota e ela o abraçou. Voltaram ao teto no exato momento em que os guardas atravessavam o corredor logo abaixo.
O animal andou o mais rápido que pôde enquanto os guardas abriam a cela de Nile e procuravam por pistas sobre como ela poderia ter escapado e o que haveria causado aquele buraco na grade.
− Aquele pestinha não deve estar longe. Vocês dois procuram a 3h e nós procuramos a 9h. Nos encontramos a 12 e partimos para 6! Vão! Vão! Vão! Peguem aquele ladrão!
Os homens correram para lados opostos. Nile permanecia agarrada ao cachorro, temendo pela própria vida.
− Você sabe pra onde ir? Aqui, cheira isso. – sussurrou, posicionando seu manto negro sobre o nariz do canino-dragão – Se você conseguir seguir esse cheiro, achamos minha mochila, e minha mochila tá perto de uma saída.
O cachorro assentiu e desceu do teto. A garota seguia a seu lado enquanto ele farejava pelo chão, guiando-os por escadas, mais corredores, salas, até que Nile conseguiu se localizar novamente. Estavam perto do depósito, o mesmo no qual estocara sua mochila.
− Muito bem, Dragão! – acariciou o pescoço do amigo – Você é incrível!
Reconquistando a confiança, Nile correu como uma sombra, refazendo seus passos até a sala, onde encontrou sua mochila de suprimentos escondida debaixo da mesma prateleira. Ela teve o cuidado de checar se havia algo faltando ou algo a mais, colocado para seguí-la ou mesmo envenenar o alimento, mas tanto ela quanto o faro de Dragão confirmaram que não.
A mochila foi jogada sobre as costas da menina e ela andou até a escada, subindo-a e abrindo o alçapão, que era aberto por dentro para casos de incêndio acontecerem, e fechavam automaticamente por fora. Lógica burra da Capital, em sua opinião. De toda forma, facilitava seu trabalho.
Dragão a seguiu, o rabo sacudindo de um lado para o outro. Nile procurou algum pedaço de pão que pudesse dar ao cachorro e jogou ao chão. A comida foi atacada pela criatura e dela nada restou após poucos segundos. Ele devia de fato estar morrendo de fome. Talvez estivesse perdido lá embaixo? Talvez fosse mais um prisioneiro? Talvez estivesse sendo forçado a trabalhar para a Capital? Não sabia, e também não importava.
− Nós fomos uma bela dupla ali embaixo, rapaz. O que me diz de ficar comigo? Podemos fazer isso mais vezes. – aproximou-se do cachorro e sentou sobre seus pés, oferecendo a palma da mão.
Dragão colocou a pata sobre a mão da nova amiga e os dois fugiram de perto daquela porta, rumando ao Barraco dos Sem Teto.
Amei!!!!!!!!! Parabéns!!!!!!