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O Coração de Serena

  • Foto do escritor: Heloysa Galvão
    Heloysa Galvão
  • 3 de mar. de 2019
  • 6 min de leitura

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A água morna descia pelos longos e densos cachos negros de Serena enquanto a jovem engenheira, de apenas 26 anos, massageava suas raízes, permitindo que a água lhe entrasse pela floresta como um rio efêmero em época de chuva, nutrindo suas madeixas com o modesto perfume de coco do shampoo que já estava por acabar.


Seus cabelos lhe tapavam os ouvidos, tornando todo e qualquer som distante e tão opaco quanto o vidro que lhe rodeava o corpo, prendendo o calor acolhedor do banho em 2 metros quadrados que congelam o tempo por apenas um momento de cuidado próprio.


Serena fechou os olhos e massageou delicadamente os braços, a barriga, os ombros, o pescoço e os seios com o sabonete de romã, permitindo-se suspirar após um longo dia de estudo, estresse e trabalho, de lidar com gente ignorante e colegas de trabalho vagabundos que lhe deixavam todo o trabalho às costas, deitavam no sofá e esperavam que magicamente todos os deveres se cumprissem. No caso, a maga era ela mesma.


De nada adiantaria reclamar ou discutir, apenas mancharia sua imagem na empresa e seu convívio com os demais se tornaria ainda mais insuportável. Não era justo, mas era com o que havia aprendido a lidar para pagar as contas. Aquele era seu momento, em que nada mais importava, em que ninguém mais existia, e nada lhe poderia tomá-lo. Não hidratava seus cachos, esfoliava o corpo e depilava as pernas por mais ninguém, não era porque havia marcado de ir ao cinema com Mateus, com quem namorava há 2 anos e 3 meses, era porque assim gostava de estar.


O vapor subiu em linhas tênues à janela do banheiro quando Serena abriu o box de vidro, contrastando frente à luz e desenhando-se em pinturas que sumiriam em poucos segundos. A garota permitiu-se se divertir soprando no vapor que subia e formava espirais, sentia-se dentro de um quadro de Van Gogh.


Secou rapidamente o cabelo, aplicou seu creme diário de hidratação e o prendeu sob uma touca enquanto ligou a playlist do celular no aleatório e o deixou no máximo volume. Ainda faltava uma hora até que fosse o momento certo de descer de seu apartamento e esperar pelo próximo ônibus na parada a uma quadra de distância. Tinha tempo para dar mais atenção e cuidado ao seu corpo, há tanto tempo deixado de lado pela loucura cotidiana, para massagear suas pernas, acender um incenso e dançar sozinha por alguns minutos, rodopiando nua em seu quarto até esquecer essa baboseira de “dance como se ninguém estivesse te olhando dançar”. Não! Dance como se todos lhe estivessem assistindo, como se sua vida fosse um espetáculo que valha a pena se pagar pra ver, dance tão solta, feliz, leve e desinibida que as pessoas se sintam convidadas a parar para observar tamanha beleza. E ela dançou, e eu pagaria para ver.


Sozinha no quarto, nua, com a touca na cabeça e escorregando sobre os pés que não foram enxutos direito, ela dançou no piso liso e empoeirado a uma música que não bem sabia reconhecer o nome, até que a música parou e deu lugar a uma solitária vibração indicando a chegada de uma mensagem.


Serena caminhou até a bancada onde havia repousado o celular e digitou a senha na tela, cujo papel de parede era uma foto ao por do sol, em que ela e Mateus trocavam olhares apaixonados.


“Precisamos conversar”, era a mensagem de Mateus. Serena digitou com dedos ágeis: “claro, a gente se fala no jantar”, “antes do cinema”, completou.

A resposta não demorou a vir: “não, é melhor falar por aqui mesmo”

“Você vai cancelar de novo, não é?”, Serena abraçou o celular com as mãos e sentou-se à cama, a tela azulada iluminava seus olhos negros de jabuticaba.

Mateus foi objetivo: “Serena, eu quero terminar.”


A garota ficou estática, a mensagem a abalou como um terremoto, não esperava por aquilo e não sabia bem como reagir. Em seu lado da tela, observava três pontinhos aparecerem e desaparecerem um após o outro logo abaixo do nome “Meu amor”, como ela havia salvo o contato de Mateus.


“Só não está dando certo. Desculpe”, a última mensagem veio logo antes de Mateus deixar de ficar online. Um término por mensagem, uma razão genérica e um pedido de desculpas ordinário. Era isso que ela merecia após mais de 2 anos de relacionamento.


Serena jogou-se na cama, molhando os lençóis bagunçados e os travesseiros manchados do vinho derramado há mais de cinco meses, mas que nunca havia conseguido tirar. Expirou profundamente tentando não chorar, ela não merecia isso também. Não merecia terminar o dia cansada e chorando na cama, com um cabelo cheirando a coco, por causa de alguém que não se importou se ela terminaria o dia assim. Idiota.


Mas e se ele simplesmente não sabia como fazer isso? Se ele também estava com medo da própria reação e da reação dela e não fazia ideia de como agir?


Não. Nada justifica, pare de tentar encontrar desculpas quando nem mesmo ele tentou.


Serena rolava de um lado para o outro da cama, abraçada a um travesseiro, sem saber muito bem se sentia raiva, tristeza, ou o que mais se podia sentir.Talvez tudo ao mesmo tempo, até mesmo alívio.


Então parou e, permanecendo deitada na cama, colocou a música para tocar no aleatório novamente. As melodias deslizavam através da densidade do ar que agora Serena respirava, o peito subindo e descendo dolorosamente enquanto por dentro ela apalpava o coração vazio cheio de ecos. O sangue corria por suas veias mas apenas o barulho das células batendo umas nas outras reverberava pelas paredes opacas cor de castanha. Estava sozinha, como sempre estivera, o pulmão gelado de respirar um ar úmido de lágrimas nunca choradas por todos os olhos desesperados por um afago, sem condições de implorar por carinho.

Estava sozinha, chorando sozinha, na cama, sozinha, com o cabelo macio cheirando a coco. Todos estávamos sozinhos e sempre estivéramos, todas as relações que ela criara até agora eram tão delicadas quanto pó de vidro e cortavam, como cortavam. Relações que eram mantidas com os dois prendendo a respiração para evitar que fosse quebrada a redoma, mas ela tinha medo, tinha medo de prender a respiração e nunca mais ser capaz de respirar de novo.


E nesse medo de perder o outro, na verdade, ela já havia perdido, pois nunca o tivera de verdade, podia ser deixada em um estalar de dedos, esquecida em um piscar de olhos, trocada na mesma velocidade que um beija-flor bate suas asas. Rápido assim, simples assim, fácil assim. E durante todo esse tempo ela era a pétala da flor que caía e o outro era o beija-flor que voava e apenas partia para outra flor enquanto ela não se importava em apodrecer junto à terra.


Ela merecia uma razão, um porquê, algo que a fizesse ter a certeza de que havia pelo menos um problema, porque era melhor que houvesse um problema com ela do que ela não ser nada.


Serena pegou novamente o celular e encarou a última mensagem. “Só não está dando certo. Desculpe”.

Em seu olhar turvo de lágrimas, Serena apagou a conversa e o contato e tentou se dispersar em alguma rede social. Quantas dessas pessoas foram trocadas ontem, substituíram outras e serão trocadas amanhã? Quantas relações não-palpáveis escorriam entre os dedos e quais dessas pessoas se esforçavam para pegá-las e niná-las com as mãos em concha até que evaporassem?


Aquilo não estava ajudando. Bloqueou a tela e jogou o celular ao seu lado. O creme em seus cabelos secava e a água nos lençóis também, menos as lágrimas, que não iam embora. A sensação de pequenez e inutilidade ainda a dominava, ainda se sentia vazia, desnecessária, trocável, facilmente deixada de lado. O ar se tornava mais pesado, uma fumaça negra que lhe sufocava os pulmões, e ela, que não conseguia respirar, chorou porque se afogava em uma imensidão de nada.


Em um último olhar de desespero, procurou em seu celular o número de Larissa, sua amiga mais íntima desde o colégio, e rezou enquanto ligava para que ela se importasse o bastante.


...


Encolhida em meio a travesseiros e lençóis, Serena foi encontrada adormecida por Larissa.


− Rena, ei, tá tudo bem? Trouxe um copo de água pra você. – Larissa acariciou a testa da amiga, que ardia em febre, e lhe retirou a touca de hidratação enquanto Serena acordava. – Vem cá, se senta um pouquinho e bebe um pouco de água.


Após beber alguns goles de água, que não se deu ao trabalho de contar, Larissa continuou:


− Vamos tirar esse creme do seu cabelo e vestir uma camisola depois, aí assistimos 101 dálmatas, pode ser? – Larissa sorria um sorriso gentil, que somente ela sabia dar.


Serena assertou com a cabeça e sorriu de lado, sentindo que seu coração vazio poderia ser capaz de ser preenchido.



2 Comments


vanyacg
Mar 07, 2019

Lindo, conseguimos sentir cada milímetro do que ela sentia

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renally.vasconcelos
Mar 03, 2019

eita que levei um susto quando vi meu nome "Rena" kkkkkkk que lindo esse conto <3

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